No princípio do ano 2017, fui desafiado por José Tolentino Mendonça a participar numa peregrinação à Holanda — Nos Passos de Etty Hillesum —, organizada pela Capela do Rato em Lisboa. Propósito: não apenas conhecer a sua vida e os seus lugares, mas sobretudo entrar na sua espiritualidade e deixar-se transformar por ela.
Além de integrar o grupo como peregrino, tinha a missão de produzir um registo fotográfico que pudesse, mais tarde, com uma escolha de textos do seu Diário, vir a ser materializado num livro ou numa exposição.
No meio de grandes transformações que ocorriam na minha vida, achei que poderia ser bom e aceitei o desafio. Só não sabia que, mais tarde, me iria também ser pedido que escrevesse sobre esta experiência…
Quando acabei de ler o Diário de Etty Hillesum, lembrei-me de uma frase que alguém terá dito: «Certos livros deixam-nos o barco depois da viagem.» Etty, com o seu Diário, tinha-me deixado não só o barco, mas também uma forte tempestade que precisava de ser domada.
Como foi possível que uma só pessoa provocasse em mim sentimentos tão contraditórios?
Tanto me irritava com o seu excesso de introspecção, como me apaziguava com as suas descobertas; tanto parecia tornar tudo mais complicado, como sabia tão bem dar nome às coisas; tanto me deixava perdido e emaranhado nos seus caminhos interiores, como me oferecia pistas tão claras, de uma imensa frescura; tanto me cansava da sua complexa personalidade, como provocava em mim o desejo de uma nova espiritualidade por ela inspirada.
Foi neste cenário que, em Julho de 2017, parti, em peregrinação, para a Holanda.
E depois veio a parte mais difícil, partilhar por escrito esta experiência. Na verdade não foi apenas difícil, foi mesmo muito difícil, de tal modo que passei um ano e meio sem conseguir escrever uma palavra! O que é que me faltava?
Olhei centenas de vezes para estas fotografias; voltei ao Diário vezes sem conta… mas nada saía de mim.
Um dia percebi o que me acontecera. Não tinha ido como verdadeiro peregrino, como quem tem a coragem de partir de bolsos vazios, com o desejo ardente de acolher o que possa acontecer; como quem se dispõe a estar vigilante para não deixar que a subtileza de Deus lhe passe ao lado; como quem lhe basta o desejo de encontro para arriscar partir.
Senti-me então chamado a voltar, desta vez como peregrino, sem medo da possibilidade de regressar de mão vazias.
Marquei a viagem e em três semanas estava de partida.
Em Amesterdão hospedei-me perto da casa da Etty, pois queria fazer daí o meu ponto de partida.
No primeiro dia, noite adentro, percorri inúmeras vezes o caminho entre a sua casa e a casa de Julius Spier («o parteiro da sua alma»). Esperava com isso encontrar inspiração, mas nada acontecia. Ao frio e
debaixo de chuva, senti-me como um mendigo perdido pelas ruas de Amesterdão. Numa das voltas, sentei-me naquelas escadas do n.o 27 da Courbetstraat, onde Etty também se terá sentado a absorver os progressos que o seu coração ia fazendo. Mas nem aí me saía nada. Senti que era tudo demais para mim.
Voltei ao caminho e, a dada altura, percebi que a chuva intensa me conduzia o olhar para o chão, impedindo-me de ver o que se passava à minha volta.
Levantei a cabeça como quem deixa de olhar para dentro e comecei a fixar-me no interior das casas. O escuro da rua e o enquadramento das próprias janelas criavam a ilusão de estar no cinema a ver filmes de vidas reais: amigos à volta de uma mesa; casais aconchegados no sofá; crianças de pantufas aos saltos na cama. Cenas familiares de um quotidiano feliz e tranquilo.
Quando cheguei de novo a casa da Etty, também olhei para dentro, mas estava tudo apagado.
Então, senti que tinha diante de mim o seu legado.
A sua entrega de vida e a sua dádiva de amor estavam agora espalhadas pela paz que testemunhei no interior das outras casas, como se de um efeito colateral se tratasse. Tão discreto, tão simples; aparentemente tão insignificante, mas tão nobre e grandioso!
Voltei a Westerbork, e aí percebi que foi também por ela que aquele campo, outrora lamacento e lugar de um enorme sofrimento, se tinha podido transformar num belo, sereno e até leve jardim verdejante.
Ela, como ninguém, mostrou-me o que é guardar e defender até às últimas consequências o lugar que Deus habita em nós.
Ela, como ninguém, ensinou-me a importância de exercitar a gratidão.
Ela, como ninguém, mostrou-me que é o facto de esperarmos um destino comum que nos faz cúmplices e irmãos na aventura do caminho.